quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

A Deusa das Sombras

Um dos maiores abalos da minha vida teve-a ao analisar o nome do rio que se abeira da vila de Guitiriz [nota 1], o Escadevas. Ao tentar reconstruir o étimo, dei com duas vias convergentes:

a) *(RĒNOS, SRUTUS) SKĀTÓ-DĒWĀS “(rio) da Deusa-das-Sombras”, um composto bimembre de *SKĀTON (neut. sg.) “sombra; reflexo; fantasma” [nota 2] e DĒWĀ em genit.; ou

b) *(RĒNOS, SRUTUS) SKĀTON DĒWĀS, com SKĀTON genitivo do plural, o que é quase igual mas construído doutro jeito. A Deusa das Sombras é claramente a Senhora do Mundo Inferior, *MORIRĪGANĪ.

Todo o partido de Vilalva, nomeadamente Guitiriz, apresenta rastos de devoção à deusa céltica como Senhora do Mundo Inferior. Limite provincial é a Serra da Loba, onde nasce o rio Lavrada [nota 3]. Lupa é o nome latino da deusa dos infernos. Do extremo sul do concelho é Negradas: *Nigrātās metaforicamente “enlutadas”. Descreveram-me o Guitiriz balneário, que não vi, como lugar paradisíaco com a só tacha do cheiro a enxofre, tradicionalmente vinculado ao Mundo Inferior [nota 4].

Não acaba aí. Nos Curveiros, Trás-Parga, perto de Guitiriz, em 1910 achou-se uma lapide dedicada a COVENTENA [nota 5], que Monteagudo supôs oferecida por um soldado galeco que traria a devoção desde Britânia, onde, perto do Vallum Hadriani, há vários epígrafes a KOWENTĒNĀ [nota 6] . Esta pode analisar-se: o prefixo KO(M)- [nota 7], a raiz ie. *wen- “desejo; desejar” e desinência -ĒNĀ. Logo cabe traduzir “a da reunião amorosa”, mas para assegurá-lo e saber do que se trata cumpre pôr o contexto mítico.

O ano novo céltico iniciava no 1º de SAMONIS (“reunião”), próximo do nosso 1º de novembro. Sabido é sobreviver ecos em Todos os Santos (e Defuntos) e em Hallowe’en. SAMONIS deu o gaél. ant. samuin, samain, hoje samhain [sãuň]. Os celtas, e outros povos, começavam os ciclos pela metade escura: a dia começava na queda do sol e o ano no início do inverno (boreal) [nota 8].

O mês (e festival) dizia-se SAMONIS “reunião”. Que reunião? O encontro amoroso, na beira de um rio no Mundo Inferior, da deusa única céltica, no aspecto de Senhora do Mundo Inferior e da Guerra (*MORIRĪGANĪ “Rainha de espetros”), com Teutatis, Deus da tribo, Pai dos homens e Senhor do Mundo Inferior, nomes antigos dos irlandeses Morrigain e Dagda, gauleses Sucellos e Herecura, e hispânicos Endovellicos e Ataicina. A amorosa cita tinha a sequela importante de a deusa subministrar depois ao seu amante os segredos para vencer na próxima batalha mítica.

Vê-se a congruência desta *SKĀTÓDĒWĀ KOWENTĒNĀ, a Deusa das Sombras e a par a da Reunião Amorosa. A proximidade de Guitiriz e Trás-Parga também integram e consolidam os dados. Entre si e com Negradas, com o cheiro a enxofre e com a Serra da Loba. Não é ousado supor que os nossos avós pagãos projetavam no Escadevas a cena do mítico conúbio.

Um arroio a nascer em Friol que vai ao Parga é o Lavandeira, um nome latino repetido inúmeras vezes em pequenos regatos. Na Galiza o sentido parece ter-se apagado, mas em todos os países que fizeram parte do mundo céltico dura, mais ou menos viva, a memória folclórica duma sobrenatural figura feminina que de noite lava no rio, quer as roupas, quer as armas, quer os corpos, dos que pronto vão morrer. Na Escócia dizem serem mulheres falecidas de parto, condenadas a lavar por todo o tempo que deveram ter vivido, mas isto é secundário, pois a lavandeira é eco de Morrigain. As Lavandeiras eram as Lâmias que os rústicos “apellant in fluminibus”, segundo São Martinho de Dume. Em gaélico chamam bean-nighe “mulher da lavagem” à que veem lavando nas correntes solitárias.

Notas:
1. Guitiriz é nome de possessor, do híbrido germano-latino *Wītirīcī “do Chefe Branco”. A colonização germânica pode notar anterior cariz agreste. Neste rasgo insiste Ceçar: virá do híbr. celt.-lat. *cētiāriī “os do souto”.

2. Gaél. scáth n., galês mod. ysgawd, córn. ant. scod, br. ant. scot, mod. skeud. O céltico tinha Ā longo na raiz, do ie. Ō (gr. σκότος “escuridão”, gót. skadus, ingl. shadow). Quadra falar no étimo de Escócia, declarado ignoto:

O gaél. ant. scot “irlandês”, pl. scuit, dat. pl. scottaib, é do baixo-lat. scottus ou scotus (circa 400). De scottus são ingl. scot [skòt], ant. alto alem. scotto (al. Schotte), neerl. méd. Schotte, mod. Schot. E o cast. escueto e o gal.-port. escoteiro (< *scottariu-), cf. Coromines (DCECeH, escueto). Em latim não há étimo. Antes e depois do popular scottus, a forma regular nos textos era scōtus, donde fr. ant. escot e italiano scoto. Por que tal alternância? Talvez algo na língua original topava dificuldades ao verter-se ao baixo-latim. O latim falado do séc. I d.C. não distinguia vogais longas de breves e substituía a oposição com o timbre fechado das vogais que foram longas, e o aberto das breves. Scottus e scōtus seriam dous intentos por refletir um O longo aberto não latino. Scōtus tinha a dificuldade do O longo latino fechado. Scottus evitava o empeço pelo O breve latino, de timbre aberto, e T geminado alongava a sílaba, atingindo assim equivalência acústica com a vogal longa que vejo no original. Com efeito, vejo o étimo *skōtu- com Ō aberto. Como explicá-lo? Donde virá? Scottus-scōtus no primeiro milénio designava os irlandeses; só depois os caledónios, trás a vinda dos irlandeses fundadores do reino de Dál Riata, que trouxeram a língua gaélica arredor do ano 500. O vocábulo Scottus-scōtus nasceria na Britânia bilingue celto-latina, que recebia as invasões dos irlandeses por toda a costa leste de muito atrás. Breve, nasceria no céltico britânico e daí passaria ao latim local, deste ao latim continental e às línguas germânicas. Cabe datar os empréstimos entre o séc. I d.C. e arredores do ano 400, tempo dos primeiros documentos. Justo desde o séc. I, o britano virara Ā em Ō aberto. Há voz céltica desse perfil? Justo *SKŌTO- era a forma britana antiga do *SKĀTON, étimo das neocélticas acima referidas. Além de “sombra”, todas são metaforicamente “fantasma”. Os piratas pagãos da Irlanda, hirsutos irmãos dos britanos semi-romanizados, já cristãos, eram por estes qualificados de “sombras, fantasmas” pelo arrepiante das suas acometidas ou talvez pela tintura de guerra que ainda usavam, tal qual eles mesmos anos atrás.

3. O rio Lavrada não é de lavrar. Será variante do *LABRONĀ “divina Faladora” de várias Célticas, alterada pela paretimologia de laborare; ou talvez do particípio *LABRATIĀ “Falada” (sentido ativo).

4. Atribui-se à memoria bíblica do vale de Ge-Hinnom, mas será simbolismo universal antigo, fundado no cheiro.

5. O teónimo lê-se COnVETENE. O primeiro N foi inserto ao declinar o céltico por paretimologia de conventus. Tem -E por -AI de dat. sg. Ver meu Dos três Lugoves Arquienos..., em Grial, Vigo, nº 59, e Agália, nº 31, 1992, § 9. 2.

6. Na da fonte de Carrowburgh, no muro de Hadriano, é COVVENTINA, primícias da grafia VV para uau (séc. II ou III d.C.). O relevo figura a deusa deitada numa folha de lírio-d’água a flutuar (Museu de Newcastle upon Tyne).

7. Prefixo, prevérbio e preposição de companhia. Em céltico o som nasal caía ante W. A raiz *wen- (cf. lat. venus, venēnum [< *venes-nom “poção amorosa”]) é freq. em célt.: *WENIĀ “parentesco; família”, Venta teón. e topón. britânico (Venta Icenorum Caister, Venta Silurum Caerwent, Venta Belgarum Winchester).

8. O festival caía no tempo já frio em que, feita a colheita, se preparava a próxima semeadura. Interessa recordar que o festival se associava com o elemento ar. Água, fogo, terra e ar não eram só dos gregos pré-socráticos; eram categorias de apreensão da realidade de todos os indo-europeus e doutras culturas. *AMBÍWOLKĀ (“circumpurificação”), pelo primeiro de fevereiro, era da água. *BELTONIOS (“[mês] da morte [do ano escuro]”) girava arredor dos fogos de primavera, no 1º de maio. *LUGUNĀSTADĀ (“matrimónio de Lugus”) celebrava as bodas com a Terra o 1º de agosto. SAMONIS tinha pois que ver com o ar, quer dizer, com os espíritos.

Autor: Prof. Higino Martins Esteves
Fonte: http://www.adigal.org.ar/files/12.pdf