quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

A Deusa das Sombras

Um dos maiores abalos da minha vida teve-a ao analisar o nome do rio que se abeira da vila de Guitiriz [nota 1], o Escadevas. Ao tentar reconstruir o étimo, dei com duas vias convergentes:

a) *(RĒNOS, SRUTUS) SKĀTÓ-DĒWĀS “(rio) da Deusa-das-Sombras”, um composto bimembre de *SKĀTON (neut. sg.) “sombra; reflexo; fantasma” [nota 2] e DĒWĀ em genit.; ou

b) *(RĒNOS, SRUTUS) SKĀTON DĒWĀS, com SKĀTON genitivo do plural, o que é quase igual mas construído doutro jeito. A Deusa das Sombras é claramente a Senhora do Mundo Inferior, *MORIRĪGANĪ.

Todo o partido de Vilalva, nomeadamente Guitiriz, apresenta rastos de devoção à deusa céltica como Senhora do Mundo Inferior. Limite provincial é a Serra da Loba, onde nasce o rio Lavrada [nota 3]. Lupa é o nome latino da deusa dos infernos. Do extremo sul do concelho é Negradas: *Nigrātās metaforicamente “enlutadas”. Descreveram-me o Guitiriz balneário, que não vi, como lugar paradisíaco com a só tacha do cheiro a enxofre, tradicionalmente vinculado ao Mundo Inferior [nota 4].

Não acaba aí. Nos Curveiros, Trás-Parga, perto de Guitiriz, em 1910 achou-se uma lapide dedicada a COVENTENA [nota 5], que Monteagudo supôs oferecida por um soldado galeco que traria a devoção desde Britânia, onde, perto do Vallum Hadriani, há vários epígrafes a KOWENTĒNĀ [nota 6] . Esta pode analisar-se: o prefixo KO(M)- [nota 7], a raiz ie. *wen- “desejo; desejar” e desinência -ĒNĀ. Logo cabe traduzir “a da reunião amorosa”, mas para assegurá-lo e saber do que se trata cumpre pôr o contexto mítico.

O ano novo céltico iniciava no 1º de SAMONIS (“reunião”), próximo do nosso 1º de novembro. Sabido é sobreviver ecos em Todos os Santos (e Defuntos) e em Hallowe’en. SAMONIS deu o gaél. ant. samuin, samain, hoje samhain [sãuň]. Os celtas, e outros povos, começavam os ciclos pela metade escura: a dia começava na queda do sol e o ano no início do inverno (boreal) [nota 8].

O mês (e festival) dizia-se SAMONIS “reunião”. Que reunião? O encontro amoroso, na beira de um rio no Mundo Inferior, da deusa única céltica, no aspecto de Senhora do Mundo Inferior e da Guerra (*MORIRĪGANĪ “Rainha de espetros”), com Teutatis, Deus da tribo, Pai dos homens e Senhor do Mundo Inferior, nomes antigos dos irlandeses Morrigain e Dagda, gauleses Sucellos e Herecura, e hispânicos Endovellicos e Ataicina. A amorosa cita tinha a sequela importante de a deusa subministrar depois ao seu amante os segredos para vencer na próxima batalha mítica.

Vê-se a congruência desta *SKĀTÓDĒWĀ KOWENTĒNĀ, a Deusa das Sombras e a par a da Reunião Amorosa. A proximidade de Guitiriz e Trás-Parga também integram e consolidam os dados. Entre si e com Negradas, com o cheiro a enxofre e com a Serra da Loba. Não é ousado supor que os nossos avós pagãos projetavam no Escadevas a cena do mítico conúbio.

Um arroio a nascer em Friol que vai ao Parga é o Lavandeira, um nome latino repetido inúmeras vezes em pequenos regatos. Na Galiza o sentido parece ter-se apagado, mas em todos os países que fizeram parte do mundo céltico dura, mais ou menos viva, a memória folclórica duma sobrenatural figura feminina que de noite lava no rio, quer as roupas, quer as armas, quer os corpos, dos que pronto vão morrer. Na Escócia dizem serem mulheres falecidas de parto, condenadas a lavar por todo o tempo que deveram ter vivido, mas isto é secundário, pois a lavandeira é eco de Morrigain. As Lavandeiras eram as Lâmias que os rústicos “apellant in fluminibus”, segundo São Martinho de Dume. Em gaélico chamam bean-nighe “mulher da lavagem” à que veem lavando nas correntes solitárias.

Notas:
1. Guitiriz é nome de possessor, do híbrido germano-latino *Wītirīcī “do Chefe Branco”. A colonização germânica pode notar anterior cariz agreste. Neste rasgo insiste Ceçar: virá do híbr. celt.-lat. *cētiāriī “os do souto”.

2. Gaél. scáth n., galês mod. ysgawd, córn. ant. scod, br. ant. scot, mod. skeud. O céltico tinha Ā longo na raiz, do ie. Ō (gr. σκότος “escuridão”, gót. skadus, ingl. shadow). Quadra falar no étimo de Escócia, declarado ignoto:

O gaél. ant. scot “irlandês”, pl. scuit, dat. pl. scottaib, é do baixo-lat. scottus ou scotus (circa 400). De scottus são ingl. scot [skòt], ant. alto alem. scotto (al. Schotte), neerl. méd. Schotte, mod. Schot. E o cast. escueto e o gal.-port. escoteiro (< *scottariu-), cf. Coromines (DCECeH, escueto). Em latim não há étimo. Antes e depois do popular scottus, a forma regular nos textos era scōtus, donde fr. ant. escot e italiano scoto. Por que tal alternância? Talvez algo na língua original topava dificuldades ao verter-se ao baixo-latim. O latim falado do séc. I d.C. não distinguia vogais longas de breves e substituía a oposição com o timbre fechado das vogais que foram longas, e o aberto das breves. Scottus e scōtus seriam dous intentos por refletir um O longo aberto não latino. Scōtus tinha a dificuldade do O longo latino fechado. Scottus evitava o empeço pelo O breve latino, de timbre aberto, e T geminado alongava a sílaba, atingindo assim equivalência acústica com a vogal longa que vejo no original. Com efeito, vejo o étimo *skōtu- com Ō aberto. Como explicá-lo? Donde virá? Scottus-scōtus no primeiro milénio designava os irlandeses; só depois os caledónios, trás a vinda dos irlandeses fundadores do reino de Dál Riata, que trouxeram a língua gaélica arredor do ano 500. O vocábulo Scottus-scōtus nasceria na Britânia bilingue celto-latina, que recebia as invasões dos irlandeses por toda a costa leste de muito atrás. Breve, nasceria no céltico britânico e daí passaria ao latim local, deste ao latim continental e às línguas germânicas. Cabe datar os empréstimos entre o séc. I d.C. e arredores do ano 400, tempo dos primeiros documentos. Justo desde o séc. I, o britano virara Ā em Ō aberto. Há voz céltica desse perfil? Justo *SKŌTO- era a forma britana antiga do *SKĀTON, étimo das neocélticas acima referidas. Além de “sombra”, todas são metaforicamente “fantasma”. Os piratas pagãos da Irlanda, hirsutos irmãos dos britanos semi-romanizados, já cristãos, eram por estes qualificados de “sombras, fantasmas” pelo arrepiante das suas acometidas ou talvez pela tintura de guerra que ainda usavam, tal qual eles mesmos anos atrás.

3. O rio Lavrada não é de lavrar. Será variante do *LABRONĀ “divina Faladora” de várias Célticas, alterada pela paretimologia de laborare; ou talvez do particípio *LABRATIĀ “Falada” (sentido ativo).

4. Atribui-se à memoria bíblica do vale de Ge-Hinnom, mas será simbolismo universal antigo, fundado no cheiro.

5. O teónimo lê-se COnVETENE. O primeiro N foi inserto ao declinar o céltico por paretimologia de conventus. Tem -E por -AI de dat. sg. Ver meu Dos três Lugoves Arquienos..., em Grial, Vigo, nº 59, e Agália, nº 31, 1992, § 9. 2.

6. Na da fonte de Carrowburgh, no muro de Hadriano, é COVVENTINA, primícias da grafia VV para uau (séc. II ou III d.C.). O relevo figura a deusa deitada numa folha de lírio-d’água a flutuar (Museu de Newcastle upon Tyne).

7. Prefixo, prevérbio e preposição de companhia. Em céltico o som nasal caía ante W. A raiz *wen- (cf. lat. venus, venēnum [< *venes-nom “poção amorosa”]) é freq. em célt.: *WENIĀ “parentesco; família”, Venta teón. e topón. britânico (Venta Icenorum Caister, Venta Silurum Caerwent, Venta Belgarum Winchester).

8. O festival caía no tempo já frio em que, feita a colheita, se preparava a próxima semeadura. Interessa recordar que o festival se associava com o elemento ar. Água, fogo, terra e ar não eram só dos gregos pré-socráticos; eram categorias de apreensão da realidade de todos os indo-europeus e doutras culturas. *AMBÍWOLKĀ (“circumpurificação”), pelo primeiro de fevereiro, era da água. *BELTONIOS (“[mês] da morte [do ano escuro]”) girava arredor dos fogos de primavera, no 1º de maio. *LUGUNĀSTADĀ (“matrimónio de Lugus”) celebrava as bodas com a Terra o 1º de agosto. SAMONIS tinha pois que ver com o ar, quer dizer, com os espíritos.

Autor: Prof. Higino Martins Esteves
Fonte: http://www.adigal.org.ar/files/12.pdf

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Fogueiras, manjares cerimoniais e os tradicionais peditórios do Dia dos Mortos

É desnecessário acentuar a importância do alimento como factor primordial de cultura: grande parte dos instrumentos das mais antigas idades líticas, e de um modo geral as primeiras manifestações do «homo sapiens», dizem respeito à sua procura e preparação, e pode dizer-se que foi a partir dessas actividades, prolongando a função biológica, que surgiu o homem como ser cultural”. Ernesto Veiga de Oliveira continua, dizendo-nos que “o alimento é o sustentáculo da vida; e, por isso, identificava-se com ela, e devia aparecer ao homem primitivo revestido do prestígio das forças superiores e misteriosas de que dependia o ser humano. Pode-se assim supor que nessas épocas remotas ele não se esgotasse na sua função nutritiva fundamental nem no seu significado social, e que, confundindo-se aspectos utilitários e místicos, se lhe atribuísse, para lá dessas funções, um valor e uma natureza superalimentar; e que, fundado nestes, ele fosse, em certas ocasiões, e sob determinadas espécies, objecto de sacrifícios, oferendas ou manducações especiais, efectivas ou simbólicas, com o carácter de práticas propiciatórias ou de purificação, de magia imitativa ou profiláctica, associadas a celebrações culturais em vista a promover a fertilidade e a abundância.

Assim, também desta festa do Dia dos Mortos fazem parte “importantes celebrações alimentares cerimoniais, que giram à volta de dois manjares específicos fundamentais: por um lado a castanha, e por outro lado bolos próprios da ocasião, que revestem nomes diferentes conforme as regiões”.

1. Os Magustos e as fogueiras do Dia dos Mortos

A forma principal das refeições cerimoniais de castanhas, nos «Santos», leva o nome popular de «magustos», e consiste numa merenda festiva de castanhas que se assam em fogueiras de silvas secas, no campo, e se comem, aí, com vinho, no meio de grandes brincadeiras de toda a espécie, nomeadamente a de as pessoas se enfarruscarem ou tisnarem com tições ou com as mãos”.

Os magustos fazem-se um pouco por todo o lado. “No Norte, encontramo-los em toda a região de Entre Douro e Minho: eles fazem-se no Porto, em Vilarinho (Vila do Conde), em Lousada (Penafiel), aqui junto ao rio, com música, violas, guitarras, cavaquinhos, bailarico e brincadeira”.

Em Portugal, e sobretudo no Norte e no Centro do País, o dia 11 de Novembro é de um modo geral festejado com «magustos» de vinho e castanhas em todas as partes onde estes ocorrem no dia de Todos os Santos, tomando assim o aspecto de um prolongamento especial dessas celebrações, a ponto de se falar em «Magustos dos Santos» e «Magustos de S. Martinho»”. O que faz sentido, se tivermos em conta que com a reforma do calendário em 1582, feita pelo papa Gregório XIII, a festividade do 1º de Novembro, passou para o dia 11, e essa pode ser a razão do nosso tradicional Magusto de S. Martinho, ainda uma reminiscência da nossa velha festa do Dia dos Mortos.

Os «magustos» aparecem sob esta forma em todo o Minho, em casa ou nos campos, em Trás-os-Montes, nas Beiras e no Douro, em Terras de Arouca, e na região e na própria cidade do Porto. Em Vilarinho (Vila do Conde), as castanhas comem-se com roscas de pão de trigo e nozes. Em Fafe, eles começam de tarde e duram até à noite: as castanhas assam-se em fogueiras que se acendem no meio da rua, e o vinho circula em cântaros; nessa noite, geralmente, joga-se o pau, etc.

Mas, “A refeição cerimonial de castanhas nos «Santos» pode contudo revestir formas ou aspectos diversos dos «magustos»: no leste transmontano, em Quintanilha, os rapazes vão buscar lenha ao monte, num carro que eles próprios puxam, enquanto que as raparigas fazem pelo povo um peditório de vinho e castanhas, que depois cozem inteiras, em grandes caldeiras de cobre, são as chamadas «castanhas mamotas»: à noite, acende-se a grande fogueira no largo maior da aldeia, ou ao lado da fonte, no local onde reúne o «conselho», e junto a ela brinca-se, canta-se, joga-se o «busca três» como substituto da dança que nesse dia não é permitida, e comem-se as castanhas e bebe-se o vinho” e “a gente nova e os namorados enfarruscam-se”. É um momento de festa, à volta da fogueira. “Em Paradinha do Outeiro, usa-se também a fogueira dos «Santos», que se prepara de modo idêntico”. A este respeito, Ernesto Veiga de Oliveira diz-nos que “Frazer considera as fogueiras dos «Santos» costume de origem céltica, relacionado com os festejos de princípio de ano céltico, que era nesse dia, e indica inúmeros exemplos actuais de fogueiras dos «Santos», acompanhados de práticas divinatórias, algumas delas usando a avelã.(…) Note-se que, em Portugal, é na zona leste transmontana, que foi de povoamento celtizado, que se encontram com efeito as fogueiras dos «Santos».” Na verdade, se tivermos em conta as fogueiras que obrigatoriamente tem que se fazer para os magustos, estas fogueiras encontram-se por todo o Norte de Portugal.

Assim, pode-se dizer que “os «magustos» e as demais refeições de castanhas que se fazem em Portugal naqueles dias constituiriam, de acordo com a hipótese geral europeia, reminiscências de sacrifícios ou cerimónias fúnebres rituais, que tinham lugar no dia consagrado aos mortos, e que consistiam em ofertas alimentares às almas dos mortos familiares”. Sendo a castanha o fruto próprio da estação e sabendo que “teve uma grande importância na economia alimentar de outras eras; é portanto admissível que ela tenha tido uma importância ritual correspondente” tornando-se, assim, o manjar cerimonial, por excelência, da festa do Dia dos Mortos.

2. Outros manjares cerimoniais do Dia dos Mortos

Outros manjares específicos deste dia são os bolos ou pães, que variam na receita e no nome conforme os locais onde são confeccionados. Os mais famosos são feitos na região de Lamego e em Mondim da beira, trata-se de bolos antropomórficos que dão pelo nome de «Santoros» ou «Santórios». A este respeito, Leite de Vasconcelos, diz-nos o seguinte: "Tambem na Beira comem no dia do Todos os Santos (1 do Novembro) uns pães estreitos e compridos, de trigo, chamados santoros (plural santoro, ou sanctoro, de sanctorum), —vid. Ensaios Ethnogr., II, 186—, que são, quanto a mim, estilização de figuras zoomorficas ou antropomorficas, e representam provavelmente vestígios do sacrificios (aos mortos? pois no dia 2 comemora a Igreja os fieis defuntos: cf. Rev. Lusit., VI, 24G-247)."
BOLETIM DE ETNOGRAFIA, nº1, 1920, pag.31
PUBLICAÇÃO DO MUSEU ETNOLÓGICO PORTUGUES
DIRIGIDA POR J. LEITE DE VASCONCELLOS

No livro ADAGIOS, PROVERBIOS, RIFÃOS E ANEXINS DA LINGUA PORTUGUEZA, Lisboa, 1780, encontramos a seguinte referência a manjares cerimoniais do Dia dos Mortos:
Cada porco tem o seu S. Martinho.

Em muitas regiões rurais do País, nomeadamente no Noroeste, a festa anda associada à matança do porco. E é influenciada, sob certos aspectos, pela euforia e pelo sentido de plenitude que decorre desse acontecimento que possui a natureza de uma verdadeira festa doméstica, muitas vezes mesmo a mais importante do calendário privado. No Minho, o dia situa-se na época das primeiras matanças, como o de S. Tomé na das segundas, que já têm em vista o Natal; em Gandra (Esposende), ele é dia de feira festiva de porcos. Na Mourisca (Palmela), onde há muita gente do Norte a trabalhar nas salinas que por ali abundam, faz-se igualmente a matança no dia de S. Martinho, e convida-se a família e amigos para uma grande jantarada, etc”.

Contudo, o significado mais fundo e original do S. Martinho deve procurar-se nas suas relações com o vinho. No Minho diz-se correntemente:

«No dia se S. Martinho
Mata o teu porco
E prova o teu vinho.»

Com efeito, é tradicionalmente no dia de S. Martinho que se inaugura o vinho novo, que este se prova e se atestam as pipas; de acordo com a nossa velha legislação, era mesmo proibido, em muitas partes, vender o vinho novo antes do S. Martinho, sob pena de multa”.

Servindo-nos novamente do livro ADAGIOS, PROVERBIOS, RIFÃOS E ANEXINS DA LINGUA PORTUGUEZA, Lisboa, 1780, encontramos ainda outra referência a manjares cerimoniais do Dia dos Mortos:
Isto quer Martinho, sopas de vinho.

Não deixa de ser interessante ver que as tradicionais sopas de vinho, comuns por todo o Norte de Portugal, sobretudo com a designação de sopas de cavalo cansado, deveriam também ser servidas nesta data.

No Nordeste Transmontano é também comum cozinhar carne de cabra. Veiga de Oliveira refere que numa localidade do distrito de Bragança, em S. Julião, “no dia 1 de Novembro, os mancebos comem em comum dois chibos, dos quais um foi fornecido pelos rapazes, e o outro pelas raparigas”. Também na aldeia de Cidões, no concelho de Vinhais, na noite de 31 de Outubro, celebra-se a Festa da Cabra e do Canhoto, com uma fogueira no meio da aldeia, onde se cozinha carne de cabra para acompanhar o pão e o vinho, comida cerimonial oferecida a todos os forasteiros que por ali passem.

Um último manjar cerimonial dos «Fiéis» entre nós são as papas de abóbora-menina, que se encontram em Oliveirinha (Aveiro). O costume é certamente excepcional; contudo, vimos que em Coimbra a abóbora aparece também associada ao culto dos mortos, personalizando a ideia que ali preside ao peditório dos «bolinhos, bolinhós», numa sugestiva figuração que a forma do fruto certamente inspira. Deste modo, a significação do costume de Oliveirinha, como manjar fúnebre, parece confirmar-se, e o facto adquire toda a sua importância se se pensar que a abóbora-menina, naquela região e de uma maneira geral no Norte do País, é normalmente um manjar próprio do Natal, soba a forma de bolinhos de bolina [ou de gerimum] – o que relaciona alimentarmente esta última festividade com o culto dos mortos.”.

3. Peditórios cerimoniais do Dia dos Mortos

Os «Santos» e «os Fiéis» são uma época de peditórios, como meio normal, e de natureza cerimonial, de obtenção dos seus manjares específicos”.

Subjacente a estes peditórios está a crença de que “uma vez por ano, no dia consagrado aos mortos, as almas dos defuntos vêm à terra visitar os lugares que em vida habitaram, isoladas ou em procissões: e , correspondentemente, nos dias dos «Santos» e dos «Fiéis», fazem-se bolos destinados às almas, peditórios e esmolas desses bolos, mesas postas para os defuntos, e oferendas alimentares, a par com luminárias sobre as campas. É lícito supor-se que esses manjares eram originalmente destinados aos mortos.” Neste contexto, Veiga de Oliveira refere ainda que “as Constituições do Bispado do Porto mencionam expressamente as manducações sobre as sepulturas, ao decretar a proibição geral dos festins fúnebres nos templos”.

Pode-se dizer, então, que “de um modo geral as crianças e os pedintes, que no dia de «Finados» andam de porta em porta a pedir, parecem representar as almas dos mortos que nessa mesma ocasião também erram pelo mundo, e por isso dar-lhes pão equivale a dá-lo às próprias almas”.

No Centro do País é comum o peditório do «Pão por Deus», habitualmente feito por crianças. “Em Coimbra o peditório menciona «Bolinhos, bolinhós»”. “No Norte, em Santo Tirso, andam também neste dia grupos de pessoas, que nem sempre são indigentes, a pedir pelas portas, acompanhadas de crianças, muitas vezes emprestadas; trazem sacos nas mãos, e aí metem a caneca do cereal com que tradicionalmente os presenteiam”. Estes peditórios visam sempre a obtenção de manjares cerimoniais, como são ainda “os casos dos peditórios de castanhas e vinho em Trás-os-Montes”.

4. Abóboras iluminadas, algazarra e procissões

Por estranho que pareça, Veiga de Oliveira refere dois casos do uso tradicional das abóboras iluminadas, um em Coimbra e o outro em Guimarães:
  • Em Coimbra o peditório menciona «Bolinhos, bolinhós», e o grupo traz uma abóbora esvaziada com dois buracos a figurarem os olhos de um personagem e uma vela acesa dentro”;
  • Além do caso de Coimbra, conhecemos entre nós outro exemplo da utilização da abóbora ou cabaço como figuração humana, nas máscaras das esfolhadas de Santo Tirso de Prazins (Guimarães), que depois estes passeiam, alçadas num pau e com uma vela dentro, e deixam espetadas em qualquer sítio mais ermo, para meterem medo a quem passa”.
Também entre nós são comuns as procissões que “parodiam os cortejos religiosos, e em versão báquica”. Naturalmente, estas procissões decorrem no dia de S. Martinho. Mas, mantendo-nos na hipótese de se tratar da mesma festividade, aqui ficam referenciadas: “O costume destas «Procissões» é geral no Norte. No Minho, em Fafe, elas vão em rusgas pelas ruas, com música de harmónios, cavaquinhos, pandeiretas e ferrinhos. Em terras de Barroso, no concelho de Montalegre, os homens, nesse dia, levam para o monte castanhas e vinho, e fazem brincadeiras ruidosas; aquele que apanha a maior borracheira é nomeado «Juiz de S. Martinho», e todos o ovacionam, berrando:

«Viva S. Martinho
 A cabaça e o vinho!» ”

E a noite de S. Martinho é no Norte, por tradição, uma noite “com chocalhos e campainhas, e também de travessuras e partidas que se fazem em várias partes, sublinhando as facécias e manifestações típicas da bebedice, e que sem dúvida se relacionam com esse ritual de licenciosidade geral. E é seguramente num espírito semelhante que se organizam as voltas nocturnas com o estrondo de instrumentos ruidosos, conduzidos nesta noite pala juventude ao longo das ruas e por vezes mesmo diante das casas de certos vizinhos pacíficos, por simples espírito de liberdade irreverente”.

E pronto, é esta a festa, são estas as tradições. :)

Nota: todas as citações que não estão referenciadas foram retiradas do livro: Ernesto Veiga de Oliveira, Festividades Cíclicas em Portugal, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1984.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Culto dos mortos: ceia ritual em honra dos antepassados

Nesta noite ninguém cuide
Encontrar-se à mesa a sós,
Porque os nossos queridos mortos
Vêm juntar-se a nós.

Esta é uma velha quadra popular referida por Ernesto Veiga de Oliveira, no seu livro Festividades Cíclicas em Portugal, do qual me vou socorrer ao longo deste post. A quadra é relativa à noite da consoada, mas segundo este autor: “são muito numerosos e significativos os costumes e práticas próprias do Natal, que aparecem associadas à evocação dos defuntos, designadamente sob a forma de crença na sua comparência, nessa noite, na casa onde viveram”. A este respeito o autor remete-nos ainda para Consiglieri Pedroso, Leite de Vasconcelos e Alberto Viera Braga.

Temos que entender que a prática cristã de acender velas e colocar flores nas campas dos defuntos, ao mesmo tempo que se lhes rezam uns responsos, é muito diferente da velha ideia pagã de celebrar os mortos com manjares cerimoniais, confraternizando à volta da mesma mesa, partilhando uma refeição.

A dado momento a ceia de Samhain deixou de existir, passou a ser proibida, que mais restava àqueles que queriam celebrar à maneira antiga senão transferir esses costumes para outra data, para a única celebração do ano que ainda começava, à velha maneira pagã, após o pôr-do-sol, com uma ceia de confraternização. De resto, é ainda o mesmo tempo, continuamos no inverno, na metade do ano das trevas, no tempo da morte e do renascimento.

Vejamos, então, dois aspectos importantes da ceia de convívio com os que partiram:

Em primeiro lugar, o prato a mais na mesa, em memória daqueles que partiram. Veiga de Oliveira diz-nos que também “no Alto Minho, para a ceia da consoada, punha-se um talher a mais na mesa, que se destinava à pessoa de família falecida em data mais recente.

Em segundo lugar, o aspecto de não retirar a comida da mesa, também um velho costume das terras do norte. “Em várias localidades, como Guimarães, terras de Barroso, Rio tinto, nos arredores do Porto, etc., a mesa da ceia da consoada, na véspera do Natal, não se levanta, para que os «alminhas», que nesta data comparecem, por vezes a altas horas, encontrem de comer.

De notar ainda “o costume de se estender palha no chão, em redor da lareira, na noite de consoada, que se observa em vários pontos do Norte do País – em terras da Maia, na Póvoa de Varzim, em Vilarinho, no concelho de Vila do Conde, etc. – pode talvez ser interpretado como uma prática relacionada com o culto dos mortos, e como uma manifestação da crença na sua comparência na casa onde viveram, nessa data”. Naturalmente, as pessoas já não sabem o que esteve na origem deste costume e inventam razões. Mas, Veiga de Oliveira diz-nos ainda que também na Dinamarca este costume é observado e “que tem lugar a fim de que os mortos, que nessa noite comparecem, se possam deitar nas suas camas, daquela forma desocupadas: e parece-nos legítimo interpretar o costume português neste sentido, já porque a sua forma material é idêntica nos dois casos, já porque, como vimos, a associação das celebrações do Natal com a ideia da comparência dos mortos nessa noite se documenta entre nós pelos demais exemplos, tão significativos, que apontamos”.

Ainda segundo este autor, “A crença na visita das almas na noite de Natal existe também na Galiza, onde parece ter um carácter geral: e, a este respeito, Jesus Taboada, em 1958, escreveu: «É costume em muitas partes (daquela província) deixar-se na noite de Natal o fogo aceso e um lugar e guardanapo à mesa, para que o Menino Jesus desça a cear. E em San Millán (Cualadro) deixam para as almas a oferta de leite ou cera, parecendo assim que se honraram primeiro os mortos com estes banquetes familiares, e por influência cristã se estendeu o costume ao Menino Jesus em lugar dos antepassados, para se santificar a festa pagã.»”.

De tudo isto podemos concluir que, em Samhain ou no Solstício de Inverno, o tradicional banquete de confraternização com os antepassados existia nestas terras da Galécia. E, na minha opinião, é uma bela tradição.

Passemos agora, então, para os manjares cerimoniais, o que nos leva a novo post. :)

Nota: todas as citações foram retiradas do livro:
Ernesto Veiga de Oliveira, Festividades Cíclicas em Portugal, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1984.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Culto da Deusa-Mãe

“(...) haverá uma intuição arquetipal dos portugueses, afundando suas raízes no mais primevo do seu passado, e que percorrerá sua história, expressando-se nas suas mais específicas e constantes criações, manifestações: entre todas, primando a suadade. Que assim por ela, terá suas raízes na religião desse remoto passado, como pré-história, e proto-história.

(…) Se nossa poesia lírica é uma das manifestações específicas e constantes dessa intuição, ela foi marcada, desde os trovadores galaico-portugueses, pelo diálogo do homem com a Natureza, ou Terra-Mãe, como união procurada, achada e vivida, do adorante com a sua deusa: forma poética que sucederá a outra, antecedente religiosa, como culto arcaico, e que marcará indelevelmente esta poesia com seu cunho de funda religiosidade. Desde então uma religião manifestando-se em forma de poesia.

(…) Porque tudo levará a crer que, no solo e humanidade que constitui agora Portugal, se teria dado no Ocidente uma das mais potentes sobrevivências do substrato pré-ariano, em si detendo na sua tradição a preponderância duma religião de carácter fortemente telúrico e matriarcal, votada ao culto da Deusa-Mãe. Religião de Mistérios, extática, tal como surge nas suas manifestações pré-helénicas. Portugal sendo assim, nesta referência mediterrânea, como um dos núcleos de sobrevivência arcaica, tal como os da Sicília, Tessália, Trácia, Mar Negro. E que aqui, se poderá atribuir e ligar, à forte preponderância dum passado megalítico, que ele, em toda a sua riqueza e esplendor, teria marcado para sempre este solo. (…)

Ao norte do país, no território galaico-português, uma forte tradição dos povos megalíticos vindo-se unir à influência dos povos celtas, criaria uma singular cultura de índole marcadamente telúrica e ginecocrática, que a distinguirá de todos os demais núcleos culturais de sobrevivência pré-indo-europeia entre os países do Ocidente.

Posteriormente, a existência histórica, aqui provada, após a invasão romana, dos cultos orientalizantes trazidos pelas suas legiões, como o de Cíbele, Ísis, Serapis, Mitra, cultos marcadamente iniciáticos, revelará uma afinidade, por parte da humanidade deste território, a formas ligando-se ainda ao culto de mistérios da Grande-Deusa: como novas recorrências, ou sobrevivências, duma religião ancestral.

Sinais haverá, na história da religião deste território, detectáveis desde os testemunhos da pré-história e através da arqueologia, etnologia e tradição, dum mesmo tema que, na sua evolução através dos milénios, se modula sempre renovado e diferente, mas sempre conservando sua coerência e identidade.”

Dalila Pereira da Costa, Da Serpente à Imaculada, Lello & Irmão Editores, Porto, 1984, pag. 20, 21 e 22.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Culto à Lua

"Estrabão (58 a.C - 25 d.C) falando dos galaicos diz: «Não têm imagens [de culto] e têm certa divindade inominata [latim, «sem nome»] à qual, em noites de lua-cheia, as famílias prestam culto dançando até ao amanhecer diante das portas das suas casas».
(...)
A divindade a que não davam nome (inominata) era a própria Lua.
O rito descrito por Estrabão ainda existia na Galiza, perto da fronteira com Trás-os-Montes, no princípio do século XX, constatado por um etnólogo galego: «Existe entre os aldeões um curiosíssimo costume cuja origem tenho por muito antiga. Tanto no Inverno como no Verão, mas principalmente durante a primeira das duas estações, nas noites de lua clara e especialmente nas de lua cheia, os homens e as mulheres da aldeia saem das casas para a rua a desfrutar a claridade do astro da noite. As famílias reagrupam-se, fazem festa em honra da Lua, em que homens e mulheres cantam e dançam ao som do pandeiro e das castanholas. Os cantares dirigem-se à Lua, misturando neles queixas de amor. O baile é à maneira da terra. Os cantares acabam com arrulhos dos rapazes que gritam gu-gu-gu-gu olhando para a Lua, quando a canção e o baile acabam. A festa dura até que chegue a luz do dia». [Tenorio, Nicolas, La Aldea Galega (Viana Del Bolo), Santiago, Ediciones Xerais da Galícia, 1982, p.142)] O autor não dá indícios de conhecer aquela passagem de Estrabão que se enquadra bem na região onde encontrou o costume."

Espírito Santo, Moisés, Cinco Mil Anos de Cultura a Oeste, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, p. 190, 191

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Cana Verde

Ó minha canninha verde.
Verde canna d'encannar.
Morreram as velhas todas,
Já não ha quem «talhe o ar».

Alberto Pimentel, no seu livro As Alegres Canções do Norte, de 1905, refere a própósito da caninha verde que o seu titulo não foi tomado ao acaso e remonta na origem - por mais estranho que isto pareça - á idade dos deuses. Assim, para além das conotações sexuais implícitas, havia aqui também um sentido mágico, uma vez que a canna representava um poder maravilhoso. A cana ou vara foi sempre um instrumento de magia.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

O poder oracular do cervídeo associado ao culto da terra e da água

Teófilo Braga, no seu livro O Povo Portuguez nos seus Costumes, Crenças e Tradições, vol II, de 1885, refere que Justino falla do culto das montanhas entre os Gallaicos.

Por sua vez, Dalila Pereira da Costa afirma, no seu livro As Margens Sacralisadas do Douro Através de Vários Cultos, que o poder da água é um poder específico e muito remoto da Galécia. E o poder da água é um poder oracular, que caracteriza o povo desta Galécia, tão singularmente que foi testemunhado e elogiado pelos escritores clássicos.

Ainda segundo esta autora, na poesia galaico-portuguesa, a advinhação é uma vocação exercida também através das águas, ou por um certo animal do monte, o cervo.

Para Dalila Pereira da Costa, estes dotes tão longamente conhecidos, poderão já se ter iniciado no Paleolítico superior nas margens do Côa. Pois serão os cervídeos os que surgem como os animais mais numerosos nas gravuras da fase inicial desse período, o Magdalense. Indicará este facto já a prática oracular através deles? (...) Cervos, serão depois, milénios passados, na Idade Média, ainda usados pelas fermosas; água e cervos sempre juntos nessa ciência testemunhada nas Cantigas de Amigo.

Segundo o trovador Pero Meogo, a fonte que detinha dotes oraculares, era la fonte os cervos van beber.

Tardei, mia madre, na fria fontana
Cervos do monte volviam a água

...

Que o fosse eu ver
a la fonte os cervos van beber