quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Culto dos mortos: ceia ritual em honra dos antepassados

Nesta noite ninguém cuide
Encontrar-se à mesa a sós,
Porque os nossos queridos mortos
Vêm juntar-se a nós.

Esta é uma velha quadra popular referida por Ernesto Veiga de Oliveira, no seu livro Festividades Cíclicas em Portugal, do qual me vou socorrer ao longo deste post. A quadra é relativa à noite da consoada, mas segundo este autor: “são muito numerosos e significativos os costumes e práticas próprias do Natal, que aparecem associadas à evocação dos defuntos, designadamente sob a forma de crença na sua comparência, nessa noite, na casa onde viveram”. A este respeito o autor remete-nos ainda para Consiglieri Pedroso, Leite de Vasconcelos e Alberto Viera Braga.

Temos que entender que a prática cristã de acender velas e colocar flores nas campas dos defuntos, ao mesmo tempo que se lhes rezam uns responsos, é muito diferente da velha ideia pagã de celebrar os mortos com manjares cerimoniais, confraternizando à volta da mesma mesa, partilhando uma refeição.

A dado momento a ceia de Samhain deixou de existir, passou a ser proibida, que mais restava àqueles que queriam celebrar à maneira antiga senão transferir esses costumes para outra data, para a única celebração do ano que ainda começava, à velha maneira pagã, após o pôr-do-sol, com uma ceia de confraternização. De resto, é ainda o mesmo tempo, continuamos no inverno, na metade do ano das trevas, no tempo da morte e do renascimento.

Vejamos, então, dois aspectos importantes da ceia de convívio com os que partiram:

Em primeiro lugar, o prato a mais na mesa, em memória daqueles que partiram. Veiga de Oliveira diz-nos que também “no Alto Minho, para a ceia da consoada, punha-se um talher a mais na mesa, que se destinava à pessoa de família falecida em data mais recente.

Em segundo lugar, o aspecto de não retirar a comida da mesa, também um velho costume das terras do norte. “Em várias localidades, como Guimarães, terras de Barroso, Rio tinto, nos arredores do Porto, etc., a mesa da ceia da consoada, na véspera do Natal, não se levanta, para que os «alminhas», que nesta data comparecem, por vezes a altas horas, encontrem de comer.

De notar ainda “o costume de se estender palha no chão, em redor da lareira, na noite de consoada, que se observa em vários pontos do Norte do País – em terras da Maia, na Póvoa de Varzim, em Vilarinho, no concelho de Vila do Conde, etc. – pode talvez ser interpretado como uma prática relacionada com o culto dos mortos, e como uma manifestação da crença na sua comparência na casa onde viveram, nessa data”. Naturalmente, as pessoas já não sabem o que esteve na origem deste costume e inventam razões. Mas, Veiga de Oliveira diz-nos ainda que também na Dinamarca este costume é observado e “que tem lugar a fim de que os mortos, que nessa noite comparecem, se possam deitar nas suas camas, daquela forma desocupadas: e parece-nos legítimo interpretar o costume português neste sentido, já porque a sua forma material é idêntica nos dois casos, já porque, como vimos, a associação das celebrações do Natal com a ideia da comparência dos mortos nessa noite se documenta entre nós pelos demais exemplos, tão significativos, que apontamos”.

Ainda segundo este autor, “A crença na visita das almas na noite de Natal existe também na Galiza, onde parece ter um carácter geral: e, a este respeito, Jesus Taboada, em 1958, escreveu: «É costume em muitas partes (daquela província) deixar-se na noite de Natal o fogo aceso e um lugar e guardanapo à mesa, para que o Menino Jesus desça a cear. E em San Millán (Cualadro) deixam para as almas a oferta de leite ou cera, parecendo assim que se honraram primeiro os mortos com estes banquetes familiares, e por influência cristã se estendeu o costume ao Menino Jesus em lugar dos antepassados, para se santificar a festa pagã.»”.

De tudo isto podemos concluir que, em Samhain ou no Solstício de Inverno, o tradicional banquete de confraternização com os antepassados existia nestas terras da Galécia. E, na minha opinião, é uma bela tradição.

Passemos agora, então, para os manjares cerimoniais, o que nos leva a novo post. :)

Nota: todas as citações foram retiradas do livro:
Ernesto Veiga de Oliveira, Festividades Cíclicas em Portugal, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1984.

1 comentário:

  1. Ainda hoje a minha família coloca o tal prato a mais.

    Mas no nosso interpretar, é para o caso em que apareça alguém com fome pois, neste dia, nunca se pode negar uma refeição a ninguém.!

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